Estranho como histórias antigas emergem quando nós menos esperamos. Hoje, no meu dia de folga, depois de horas limpando minha casa, parei para assistir um pouco de TV. Um programa bem bobo da MTV chamado Seven estava passando. Ia mudar de canal quando vi que eles iam mostrar uma matéria filmada na Comic Con, a maior feira de quadrinhos dos Estados Unidos.
Para quem não sabe, eu adoro quadrinhos. Na faculdade, produzi um evento de quadrinhos com um amigo. Foi assim que conheci Willian. Meu amigo Amauri e eu éramos bolsistas da CNPQ e estávamos, na época, estudando adaptação da linguagem da arte seqüencial (Quadrinhos) para linguagem teatral. Depois de tanto estudar o assunto, acabei me envolvendo na organização de um evento de quadrinhos. Willian era um garoto que, segundo meu amigo Amauri, agregaria conhecimentos em uma área que para nós era um mistério: Mangá e Animes, pois era organizador de um “clube” dedicado ao assunto. Conheci o rapaz que, extremamente magro e tímido, em poucas horas me fez dar gargalhas quase sem querer. Era como se tudo que saísse dos seus lábios fosse engraçado e genial, mas sempre mantendo uma despretensão apaixonante.
Nessa época, eu tinha namorado, provavelmente o cara mais bacana que já namorei na vida, mas como meus amigos próximos estão cansados de saber, eu sou um monstro que é capaz de se apaixonar por duas pessoas ao mesmo tempo. Para piorar a minha situação, meu namorado foi anexado ao time de organização do evento pelo meu amigo Amauri, desconhecedor da minha paixonite por Willian! Nunca vou esquecer o dia em que os dois se conheceram: Willian e meu namorado. Da mesma forma que me apaixonei quase que instantaneamente por Willian, ele e meu namorado virarão melhores amigos. Bastou um dia, nós três em um projeto de construção de displays para a exposição que seria apresentada no evento, para que três coisas se tornassem óbvias: eu estava encantada por Willian, ele e meu namorado seriam melhores amigos e meu sentimento morreria comigo, por que mesmo que eu viesse a terminar o meu namoro, nunca ousaria colocar em risco a amizade dos dois.
Assim, resignada e certa de que esse amor estava fadado a ser platônico pelo resto da eternidade, segui a vida ao lado do meu namorado, de quem não tinha motivos para reclamar. Os anos passaram, mas a sensação nunca mudou. Sempre que nos encontrávamos, a visão de Willian me fazia feliz, o seu sorriso espremido, que ele parecia tentar suprimir, era embriagador. A amizade dos dois continuou a crescer só para comprovar que estava certa, e que aquilo teria que ser uma coisa platônica. Os dois começaram a trabalhar juntos e logo a amizade virou parceria.
O estranho era que eu era feliz assim, vendo os dois trabalhar, só saber que ele estava bem era suficiente para mim. A crescente amizade com meu namorado não era o único motivo para a platonicidade do meu sentimento, tinha uma estranha sensação de que se algum dia o mundo virasse de pernas para o ar e finalmente pudesse ficar com ele, faria algo estúpido e o magoaria, como fiz com vários ex-namorados. Só a possibilidade de magoar Wiliam era insuportável. Lembro de conversar com duas amigas da faculdade sobre ele. Elas morriam de rir, não sabiam como eu podia estar apaixonada por um rapazola que pesasse menos que eu e andasse sempre arrastando suas havaianas como se ainda não tivesse realmente acordado, mas para mim, tudo nele era iluminado. Para mim ele era tão especial, que foi o único homem que coloquei num pedestal, especial demais para ser desperdiçado com mundanas desventuras amorosas.
Trabalhamos juntos várias vezes, até quando me mudei para o Rio, quando ele estava trabalhando no seu projeto final de formatura na escola de Belas Artes. Um filme usando a técnica de stop motion. Me mostrou os bonecos, o cenário... sempre modesto e reclamando da sua incapacidade de produzir material na velocidade que lhe era cobrado.
Quando me mudei para NYC, Willian ainda não tinha e-mail ou telefone celular. Parte de uma família muito simples, esses foram luxos introduzidos a ele mais tarde. Para a minha sorte, um dia , conversando via Skype com meu amigo Amauri, ele me contou a novidade: “Willian agora tem um celular.”
Liguei imediatamente, conversamos e perguntei como andava a vida. Em anos de amizade, nunca vi William com uma namorada ( graças a deus, não sei se suportaria), mas vi várias de suas colegas de classe se apaixonarem por ele sem que percebesse. Nesse dia, no telefone, ele me contou como tinha perdido uma garota por causa disso. Ela gostava dele, ele gostava dela, mas quando ele descobriu a mutualidade, já era tarde, a garota estava namorando outro. Ele falava disso com tristeza, como se tivesse perdido a única garota que já tivesse se interessado por ele na vida. De NYC, nessa época casada com o ex-namorido, não agüentei e confessei. Disse para ele que muitas pessoas já tinham gostado dele, mas que ele não acreditava em si mesmo o suficiente para perceber. Expliquei que tinha sido apaixonada por ele, mas que sabia da inconveniência do meu sentimento, devido nossa situação, e que só estava revelando aquilo para que ele entendesse que era um homem digno de admiração. Cinco segundos de silêncios foram suficiente para me derreterem de arrependimento por ter aberto a boca. Quando ele voltou a falar, supliquei que aquilo não mudasse nada entre nós, enfim, nessa época, eu já estava casada e vivendo em outro país.
Nunca mais tocamos no assunto. Mil coisas aconteceram... meu ex-namorado, seu amigo, casou com uma garota que até onde eu sei é bem legal. Meu casamento não deu certo. Willian finalmente conseguiu terminar seu filme e ganhou o prêmio de melhor curta no festival de cinema de animação de Gramado. Quando voltei a Belo Horizonte, separada do Namorido, nos encontramos para um café. Minha frustração com o casamento despedaçado e a notícia da felicidade do meu ex- namorado, ainda muito amigo de Willian, me segaram e me encheram de esperanças. Na noite anterior ao nosso encontro no Café do Palácio das Artes, sonhei que era muito rica e bem sucedida, que me encontrara com ele e lhe propusera que se mudasse para os Estados Unidos comigo para trabalhar num prestigiado estúdio de animação.
Acho que tomei uns 3 expressos. Logo meus sonhos de realização desse antigo amor foram dizimados pela notícia de que Willian finalmente estava namorando. Esbocei uma melancolia, mas ela se dissipou assim que percebi que estava bem com a garota. Surpreendentemente, fiquei feliz por eles, genuinamente feliz, e na verdade aliviada de não ter tido a oportunidade de estragar minha amizade, no meio do turbilhão de emoções que foi minha separação.
Esse não foi o único reencontro do dia, logo após o café do Palácio das Artes, fui encontrar meu amigo Amauri, que não via há alguns anos. No meio da conversa num bar, olhei para a TV. Eles estavam mostrando o Brasil Day em NYC. Achei estranho estar em Belo Horizonte, vendo NYC pela televisão, me senti pelo avesso. Lulu Santos estava fazendo o show. Sorri e me lembrei da canção que me fazia lembrar Willian:
“Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder. Deixo assim ficar subentendido. Como uma idéia que existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer.”
Revelei a Amauri a verdade sobre meus sentimento por Willian que até então ele desconhecia. Ele achou a vida muito intrigante: “ e se eu nunca tivesse convidado seu namorado para a organização do evento de quadrinhos...”- cogitou ele. Nós rimos nostálgicos e relembramos os velhos tempos como senhores de avançada idade.
Essa foi a última vez que vi Willian. Ano passado recebi o e-mail de Amauri trazendo a notícia de que um acidente de bicicleta levara Wiliam ao hospital com pouquíssimas possibilidades de recuperação. Dias de angústia, e a inevitável notícia do seu falecimento chegou. Milhões de sentimentos se misturaram em um azedo no meu estômago. A lembrança do terrível acidente de bicicleta que anos antes quase tirara a vida de meu pai. A recordação de um acidente de moto que presenciei quando criança. A vontade de ter passado mais tempo com ele. A recordação do sentimento de felicidade que sentia ao ver seu sorriso tímido, e a dura realidade de saber que nunca mais sentiria aquilo de novo... A dificuldade de aceitar que ele não voltaria. Pensei na dor da família de Willian, e também de sua namorada. Se eu, que tão pouco tive dele, sentia como se alguém tivesse me arrancado um pedaço do peito, imaginava a dor de alguém que convivia com ele todos os dias.
Nessa época, minha amiga aqui de NYC, Patrícia tinha comprado uma bicicleta. Tive uma ansiedade horrível. Meu pai quase morreu anos antes por que estava sem capacete, agora um acidente de bicicleta me levava Willian. Liguei para Patrícia para pedir que comprasse um capacete. O telefone foi para a caixa postal, mas 5 minutos depois, ela me retornou a ligação. Não pude esperar que dissesse nada. Fui logo pedindo que pelo amor de Deus, comprasse um capacete e cuspindo a história dos dois trágicos acidentes. Quando finalmente terminei, ela muito nervosa me disse que estava me ligando por que tinha acabado de cair da sua bicicleta e que quase tinha sido atropelada por isso. Um frio gelado me subiu a espinha, e nós duas engasgamos. Perguntei se precisava de ajuda, mas ela disse que estava bem e que iria direto para casa. Quando cheguei no trabalho, vi Patrícia com os cotovelos e joelhos completamente esfolados. Tive vontade de chorar, mas em vez disso, só pedi que me prometesse comprar um capacete. No dia seguinte, Patrícia resolveu se desfazer da bicicleta, pois estava aterrorizada com o acidente. Minha saúde mental agradeceu.
Na última visita que fui ao Brasil, não estive em Belo Horizonte, passei a maior parte do tempo em Teresina. Uma noite, na saída de uma festa, avistei um menino assombrosamente parecido com Willian. A semelhança era tanta, que achei que estava vendo coisas. Meus olhos se encheram de lágrimas e contemplei a idéia de ir conversar com ele, só para matar a saudades, mas achei que era maluquice. Quando cheguei em casa a ansiedade era tanta, o arrependimento de não ter chegado mais perto do garoto que tanto se assemelhava a Willian era tamanho, que não dormi a noite toda. Durante o resto da estadia no Piauí, procurei, sem sucesso, pelo rapaz nos bares da cidade. Talvez ele fosse realmente apenas uma visão.
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