domingo, março 23, 2008

A porta do Diabo


Era mais uma daquelas revelações! Eu detestava admitir, por que isso me colocava na mesma laia que o Namorido(*1), mas revelação era o melhor termo. Eu chamo de Porta do capeta essa minha revelação! Uma passagem aberta no ano passado, por onde toda a certeza amorosa que se empenhava em manter meu relacionamento se foi. Depois de tantas “maldades” sofridas nas mãos do Namorido, era difícil acreditar que tudo ficaria bem. Várias correntes filosóficas tentavam me apaziguar os nervos pelas vozes de minhas fiéis amigas:

“Ele é apenas imaturo, uma hora ele vai amadurecer!”

“Você tem que aceitar as pessoas como elas são, pensar que você pode mudá-lo é ilusão.”

“Daqui a pouco aparece alguém muito melhor e você vai é rir disso tudo.”

“Podem falar o que quiserem, mas eu acho que vocês vão se entender.”

“Não sei o que mais ele precisa fazer para provar que não é uma pessoa boa!”

“Mermã, não sei como é que tu agüentas!”

Em meio a tantas opiniões, algumas delas vindas de dentro da minha própria cabeça, eu me vi com a mão na maçaneta da Porta do Capeta. Essa é uma portinha pequena, mas que tem o poder de crescer se não for fechada a tempo.

Era um sentimento ao qual eu já tinha me desacostumado: a volta de uma certa percepção, do que eu causava nos demais ao meu redor, mais especificamente nos homens. A última vez que eu estive ciente disso foi quando o Motivo me fez ir de salto alto ao trabalho. Impressionante o poder do salto alto! Agora eu me via longe de Nova Iorque e a percepção do sexo oposto me atingiu como uma bofetada.

Durante todo o tempo em que eu tinha estado apaixonada pelo Namorido, os rapazes passavam meio despercebidos... quer dizer, não tanto. Eu sempre tive olhos para os homens absurdamente bonitos, mas confesso que estava perdendo a mão na hora de perceber o desconforto que é causado quando um homem se interessa por uma mulher, especialmente, quando essa mulher era eu. Dessa vez, foi diferente. Cheguei ao Brasil mais atenta aos olhares! Pesquisas científicas dizem que as mulheres têm a visão periférica mais desenvolvida do que os homens, enquanto esses têm a visão objetiva mais eficiente. Eles até atribuem a isso a incapacidade dos homens de acharem a perdida chave do carro dentro de um quarto pequeno. Eu acho que as mulheres têm a visão periférica desenvolvida para perceberem quando estão sendo observadas. É um dom extremamente feminino. Você não tem que olhar sequer virar a cabeça; pela imagem borrada formada no canto do seu olho você tem a denúncia: alguém está olhando para você! Daí basta uma inventada necessidade de arranjar os cabelos para desviar a visão e confirmar a suspeita. O meliante é pego em flagrante e, muitas vezes, nem se percebe desmascarado.

Além dos olhares, me pareceram também mais explícitos os gestos de cavalheirismo. Quantas foram as gentilezas para comigo. Quantas portas abertas, cadeiras puxadas, favores ofertados, presentes inesperados... Onde toda essa gentileza foi parar nesses últimos anos? Ela sempre esteve lá, eu passava despercebida por ela? Teria eu cometido tal crime ou teria sido a mão na portinha do Coisa Ruim, a porta das possibilidades que tinha me trazido de volta tal agrado.

Muitas vezes, na tentativa de me consolar, muitas de minhas amigas diziam que eu não teria dificuldade em encontrar um novo alguém. “Você pode ter o homem que quiser apaixonado por você!” Eu, relevando o exagero do “o homem que quiser”, tinha que concordar que achar outro pretendente não seria tarefa difícil. Eu tinha que admitir meu lado Casa Nova, como minha amiga da Chechênia gosta de chamar, ou seja, Don Juan! Esse era um talento que eu sempre soube que eu tive: a de conseguir manter o interesse dos pretendentes, uma vez que a relação se estabelecesse verbalmente. Nada muito anormal, nenhuma inteligência suprema, apenas uma facilidade enorme em descobrir o que cada um deles precisa ouvir para que os seus olhinhos brilhem. Uma combinação infalível de cinema, música, uma rasa pitada de artes plásticas, uma sofisticação displicente na hora de escolher o vinho, uma pitada de surpresa e subversão pela revelação do interesse em arte seqüencial (nome científico de histórias em quadrinho) e lutas marciais ( eu fiz jiu-jitsu por um ano, e sim! Eu adorava!). Era um mistura quase que 100% certeira! As vezes, eu mesma me repreendia quando me percebia usando a mesma velha fórmula. Eu pensava que os anos passavam, algumas coisas eram adicionadas na lista de qualidades, o nível de confiança na fórmula ia crescendo e os homens parecendo cada vez mais previsíveis! Alguns, claro, ultrapassavam as frivolidades e conseguiam chegar a um nível mais profundo da minha identidade, limites onde as coisas são mais confusas e imprevisíveis, mas ali, nas águas rasas das primeiras conversas casuais, era batata! Essa habilidade virou lenda no decorrer dos anos: por que eles sempre ligam no dia seguinte?- perguntavam, minhas amigas! Difícil era convencê-las de que aquilo não acontecia por causa dos meus grandes olhos castanhos!

Eu passei a criticar meus próprios métodos, racionalizar o não racionalizável. Processos auto-críticos concluíram que meu método havia sido criado inconscientemente, por isso, era genuíno e irrepreensível, assim a culpa foi por água abaixo. Além disso, eu mesma só conseguia identificar que estava atando mais um às minhas teias de viúva negra, quando era tarde para retroceder. Atire a primeira pedra quem não obtém prazer em ser admirado!

Claro que nesse ano somou-se a toda essa desenvoltura, alguns atributos tanto novos quanto irritantes: a residência em Nova Iorque e a carreira no cinema. A freqüência com que olhos se chamuscavam com faíscas quando esses atributos eram mencionados, geralmente por terceiros, se tornou irritante desde o princípio. Essas eram qualidades que eu não ostentava, nem gostava de ter agregadas. Essas tinham sido as férias dos Cinderelos, tentando espremer seus pezinhos, não tão delicados, em finos sapatos de cristal. A última vez que aquilo havia acontecido em minha vida, eu tinha apenas quatorze anos. Tempo suficiente tinha se passado para que eu me esquecesse do sentimento que aquilo despertava dentro de mim, mas também para desenvolver uma enorme desconfiança sobre esses Romeus, tão rapidamente arrebatados por encantos, que eu nem mesmo entendia como funcionava!

Vislumbrei todos os Montecchios, anestesiados de paixão, pela fresta entreaberta da portinha do Coisa Ruim! Um pavor tomou conta de mim. Era o que eu mais temia! Difícil dizer isso sem parecer insuportavelmente antipática, mas meu medo não era o de não encontrar alguém que me amasse depois do Namorido, e sim o de não encontrar alguém que eu pudesse amar incondicionalmente como antes. Mesmo antes de conhecer o Namorido, a portinha do Cramulhão era o meu pior pesadelo. Era inconcebível para mim como, diante do mar de possibilidades que se encontrava por trás daquela porta, alguém pudesse pensar em algo para sempre. Deus (e o Diabo, é claro) sabe como, mas em um momento da minha vida essa porta foi fechada e agora lá vinha ela me atormentar! A sensação de incapacidade de retribuir a afeição incondicional e eterna de uma pessoa, o medo de mudar de idéia. O medo, que deveria ser apenas o de não ter aquela pessoa ao seu lado... tudo aquilo tinha saído de lugar.

Os céus atenderam as preces e me enviaram não apenas um, mas vários pretendentes com os pré-requisitos que eu mesma havia ditado: maduros, tranqüilos e adoradores da minha pessoa. Eram como as porções no Texas(*2), muito maiores do que o que você é capaz de processar. Aqui estou eu, com minha caixa de Pandora entreaberta, olhando para os lados, sem saber se alguém vai aparecer correndo para me impedir de abri-la. A paz havia sido quebrada, e nem eu mesma sabia se esta seria passível de ser novamente instaurada. Talvez eu estivesse abrindo a porta temporariamente, talvez alguém viesse correndo e a trancaria para sempre, talvez eu a fechasse por vontade própria, ou talvez ela mesma se fechasse para mim e eu acabaria, como diria Chico Buarque, “Num tapete atrás da porta”. Por enquanto, em meus sonhos tudo era regado ao blues de Madeleine Peyroux, meu peixe favorito era Nemo, e a língua falada o Francês.

(*1) Menção ao texto Revelação, publicado no dia 09 de novembro de 2007.
(*2) Recorrer ao texto Pequenos apontamentos sobre coisas não tão pequenas..., escrito em 29 de Dezembro de 2005.

sexta-feira, março 21, 2008

Fidelíssimo


Fidel Castro renuncia o poder! Eu ouvi a notícia no jornal e... “Uau!” eu vi a expressão de admiração ser proferida por mim mesma quase que instantaneamente. Fidel era para mim como o Fantasma, o personagem de quadrinhos. Eu achava que ele ia morrendo e um sósia ia substituindo o ícone sem que ninguém percebesse. Isso explicaria tanto tempo de governo, e toda a lenda criada em torno do personagem.

Já faz um tempo que eu não ouço uma notícia que fazia minha cabeça ir a tantos lugares em tão pouco tempo. Em pouquíssimos segundos eu lembrei de tantas coisas! A primeira delas foi de um dos meus professores. Ele era de Londres e trabalhava no Rio como professor de inglês, mas antes de morar na cidade maravilhosa ele passou uma temporada em Cuba. Ele, que era um homem altíssimo e muito forte, me contou como virou um palito de magro depois de passar um mês tentando viver como os cubanos. Ele me contou que, durante o seu regime cubano, ele teve a oportunidade de ver Fidel. Ouvindo rumores de que o grande líder comunista faria uma aparição pública, meu mestre resolveu descobrir onde aquilo ocorreria. Perguntando aos moradores de Havana se os rumores eram verdadeiros e onde aquilo ocorreria, ele não encontrou resposta. Todos diziam não saber de nada. Meu mestre continuou de olhos e ouvidos abertos e não pensou duas vezes quando percebeu muitas pessoas se dirigindo a um mesmo local. Seguindo os moradores do local, ele se deparou com um parque absolutamente cheio de gente. Ele me disse que achava que toda a cidade estava lá. Ele perguntou a algumas pessoas se estavam ali pra ver Fidel Castro, ninguém respondeu que sim ou que não. Em poucos minutos que meu professor estava no local, ele foi inesperadamente abordado por oficiais. Tirado rapidamente do local, ele se viu sendo interrogado pelos oficiais cubanos sem entender muito bem por que. Ele entregou o passaporte e respondeu o interrogatório. Segundo meu professor, eles queriam averiguar se ele não estava ali espionando Fidel. Depois de passar por momentos assustadores nas mãos dos oficiais cubanos, que apesar de persuasivos, em momento nenhum usaram de força física contra meu professor. Foi permitido a ele voltar ao parque, quando o grande líder surgiu, para alvoroço da multidão. O povo entrou em alvoroço e meu amigo londrino estava lá vendo de perto, não só o lendário Fidel Castro, mas também o efeito de sua presença naquele povo que, aos seus olhos era tão sofrido. Meu professor, cansado de viver como os nativos da região, acabou procurando o primeiro restaurante turístico, comeu até tirar a barriga da miséria e depois arrumou as malas, tratando de encurtar a estadia no paraíso tropical!

Outra lembrança que a notícia da renuncia de Fidel trouxe, foi de quando eu tinha 15 anos. Era domingo à noite e eu e meus pais estávamos tomando caldo no falecido restaurante Tamelu. O Tamelu era ponto de parada obrigatório nos domingos à noite pra mim e para o meu pai. Meu irmão detestava caldo e minha mãe geralmente achava Teresina demasiadamente quente para a iguaria. Aquela noite era menos quente que o de costume, por isso minha mãe resolveu nos acompanhar. Meu pai, como sempre, degustava seu caldo de carne, minha mãe, como boa mineira, uma canja de galinha e eu me aventurava com um caldo de ostras. Meu pai espichou o olhou pra ver meu prato, franziu a sobrancelha e abriu as narinas formando sua característica cara de nojo: “Laura e suas excentricidades!” Foi logo ai que eu resolvi expor mais uma das excentricidades de Laurinha. Eu havia pensado tudo antes. Disse para os meus pais que queria estudar cinema. Ninguém se opôs a princípio. Eu continuei dizendo que o curso de cinema de Cuba era muito bom. Nesse momento eu vi o caldo de carne e canja de galinha entalando meus pais. A resposta do meu pai veio assim que ele conseguiu engolir o caldo: “De jeito nenhum!” Eu argumentei, disse que a escola de cinema de Cuba era muito boa, que viver em Cuba era barato, sendo assim seria fácil que meus pais me ajudassem a me sustentar: “Não é barato viver lá pai?” Meu pai concordou dizendo que se me mandasse cem reais por mês, no fim do meu curso eu poderia comprar a ilha inteira, mas nem por isso me mandaria para lá. “Vai para Nova Iorque se quiser”, disse ele. Nessa hora minha mãe entalou pela segunda vez: “Aonde já se viu mandar uma menina dessa idade para morar numa cidade daquela sozinha?” Eu completei dizendo que Nova Iorque era muito caro e que lá eles não iam ter como pagar minhas despesas. Meu pai não se fez de rogado e disse: “Dá sim, você lava uns pratos e a gente manda o resto do dinheiro que faltar.” Minha mãe, que sabia que eu não ia pensar duas vezes antes de aceitar a proposta de lavadoras de pratos em NYC, tratou de dizer que eu não ia. Aquilo não me incomodou, por que eu queria mesmo era ir para Cuba. Eu insisti com meu pai e perguntei por que eu não podia ir. A resposta me fez rir: “O Fidel Castro tá pra morrer!” Eu não achava que isso aconteceria antes que eu estivesse formada e de volta ao Brasil, mas também não entendia o que a morte do homem teria a ver com meus estudos. A previsão do meu pai era de que quando ele morresse, Cuba viraria o “bordel do mundo” e que o último lugar que ele gostaria que a filha estivesse era nesse “bordel”. Eu relutei dizendo que achava que ele durava mais de quatro anos! Foi em vão...

Outra coisa que passou pela minha cabeça naquele pouco tempo, foi a música cubana. Um lugar tão peculiar não teria trilha sonora divergente. Buena Vista Social Club, ai, ai... Quando eu morava no Rio de Janeiro, o glorioso Ibraim Ferrer passou em turnê no Canecão. Eu não fui por que não tinha cinqüenta reais! Pouco mais de um ano depois Ibraim falecera. Eu gastei bem mais do que cinqüenta reais bebendo para esquecer que eu tinha perdido a última chance de vê-lo ao vivo.

A última coisa de que o incidente político cubano me lembrou, foi que se eu tivesse ido pra Cuba, hoje, onze anos depois, eu teria formado, feito mestrado e doutorado, e olha que era só a renuncia, não era nem a morte!

Eu vou por aqui com a minha baixa escolaridade, acompanhando as notícias daquela ilhazinha, que sozinha, resistindo ao capitalismo e a globalização, sempre causou tanta influencia no resto do mundo!

Desperate House wife in Boston


Depois de muitas tentativas frustradas de visitar minha amiga em Boston, finalmente eu arranjei um tempinho. Eu descobri, por acaso, que eu tinha um dia de folga. Liguei para minha amiga que adorou a idéia e eu tratei de arrumar as malas.

Minha amiga se mudou para Boston quando eu ainda morava em Belo Horizonte. Boston é relativamente perto de NYC. Ônibus saem de hora em hora do Bairro Chinês de NYC para o Bairro Chinês de Boston e a passagem não custa geralmente mais que trinta dólares para ir e voltar. Com tantas facilidades no translado entre as duas cidades, era de se esperar que eu e minha amiga nos encontrássemos com alguma freqüência, mas claro que isso não acontecia! Já fazia mais de um ano da última vez que a gente tinha se visto. Ela foi uma vez a NYC e eu, uma vez a Boston. Ela tinha acabado de me chamar para madrinha do seu casamento. Depois de um bom tempo namorando, ela e o namorado resolveram se casar no civil, para que ela pudesse regularizar a sua situação com a imigração, e marcaram a data da festa para o ano seguinte. Os dois compraram uma casa e estavam reformando, eu estava indo conhecer a nova residência do casal.

Sai do trabalho na mesma hora de sempre: mais tarde do que deveria! Carregando meu computador, uma malinha de mão e minha bolsa, sai dos Estúdios Kaufmans em Astória, no Queens. Kaufmans é um lugar fácil de se perder, não só pelo tamanho e pela confusão dos corredores, mas pela história do local impressa nas paredes. Kaufmans foi o primeiro estúdio em Nova Iorque. Cada corredor era uma aula de história de cinema: I love Lucy, Vila Cézamo, A primeira noite de um homem... mas aquela noite eu tinha que me concentrar, eu não tinha tempo para ficar passeando pelos estúdios. Peguei o metro e sai no Bairro Chinês, Chinatown. A chuva que caia era torrencial. Corri para um dos pontos de ônibus do Bairro Chinês, mas quando eu cheguei o ônibus das nove da noite acabara de sair. Eu tinha que esperar uma hora pelo próximo ônibus, o que não seria um problema se não fosse a chuva. Fui à farmácia, passei pele corredor das guloseimas (light claro) e me abasteci para a viajem.

Depois que eu estava completamente encharcada e carregando ainda mais peso o ônibus chegou. Entrei no ônibus, escolhi a trilha sonora e devorei dois pacotes de salgadinhos de soja light. Dormi e acordei umas quinhentas vezes e quando eu vi, já estava em Boston. Eram duas horas da manhã quando eu desembarquei e as figurinhas que estavam na rodoviária eram no mínimo assustadoras. Eu liguei para a minha amiga a procura de resgate. Ela atendeu o telefone e me disse que estava a caminho, mas estava meio perdida, por isso podia demorar um pouco. Eu vaguei por todos os cantos da rodoviária procurando um lugar menos intimidante, mas depois de uma hora, todos os lugares tiveram tempo para se corromperem.

Finalmente minha amiga chegou! Tonta de tanto dar voltas perambulando na madrugada. Chegamos à casa dela, e que casa! Eu quase caio para trás, era uma casa de pais. Era o tipo de casa que os pais dos meus amigos tinham. Pais de família. A minha amiga estava se preparando para isso. Ela passaria os próximos anos pagando por aquilo. Lá estava aquela pequenina, minha colega de classe, comprando uma casa de quatro quartos, virando gente grande. Senti-me absolutamente imatura. Era um misto de inveja e apavoramento. Será que eu era assim tão imatura para ficar assombrada com uma casa de quatro quartos*

Passamos algumas horas colocando a fococa em dia e falando da reforma da casa. Antes que amanhecesse, nós fomos deitar. Eu não conseguia dormir, ficava olhando para o quarto de hóspedes onde eu dormia. Lembrei de quando ela havia ido me visitar em NYC e tudo que eu tinha, era um colchão inflável para ela. Eu ainda recebia minhas visitas como quando eu estava na faculdade. Imaginei-me com trinta anos de idade morando em um quarto de sete metros quadrados... Era o preço a pagar por NYC, por ser obcecada por minha carreira...

Acordei com um barulho que vinha da cozinha. Chamei por minha amiga e ela pôs a cabeça para fora do recinto. Ela preparava café da manhã. Tanto tempo vivendo naquele país, esqueci como era uma mesa de café da manhã. Pão, iogurte, manteiga, queijo, granola, café e, só para humilhar, wafles. Eu ri, tive que rir. Minha amiga é tão pequenina que pediu minha ajuda para alcançar os copos dentro do armário, mas tinha arrumado aquele café gigantesco. O seu comsorte acordara às cinco da manhã e estava terminando a pintura de uma janela. Ele veio se sentar assim que as wafles estavam prontas. Ele sentou e perguntou se elas tinham sido feitas da maneira “especial” de minha amiga. Ela me explicou que a maneira especial, era wafles queimadas. Os dois ficaram horas rindo e me contando das desventuras culinárias de minha amiga. Eu fiquei feliz por ela, os dois conseguiam se divertir no café da manhã, falando de wafles! Se aquilo não era cumplicidade, eu não sei o que seria. A luz da manhã, eu pude ver outra coisa surreal além de wafles: um quintal!

Enquanto eu me recuperava da inveja de ver alguém da minha idade com um quintal, eu fui me arrumar para um compromisso social. Era aniversário da sobrinha da minha amiga e ela tinha combinado de fazer a decoração da festa de um ano da garotinha. Nós encontramos com uma amiga de minha amiga, especialista em decoração de balões, que nos ajudaria. A garota vivia ilegalmente há oito anos em Boston, era casada com um brasileiro e tinha um filhinho. Passamos para buscá-la. Em alguns segundos a conversa se transformou em uma linguagem alienígena para mim. Elas falavam de mecânicos, de marcas de carros, de preços de combustível, de troca de pneus...quando a conversa mudou de rumo, foi a terras ainda mais desconhecidas: crianças! Era a garota falando do filho, minha amiga da sobrinha e de seus alunos (minha amiga era professora de teatro de crianças). Eu tratei de rir e continuar a balançar a cabeça.

Chegamos à casa da sobrinha de minha amiga e finalmente eu conheci a princesinha. Ela era bem pequenininha. Um ano atrás, ela tinha nascido prematuramente junto a sua irmã gêmea, que infelizmente, não resistiu. O aniversário dela era uma conquista, minha amiga estava muito emocionada, pois tinha visto a garotinha durante meses em uma incubadora. Eu fiquei brincado com ela por alguns minutos enquanto as garotas reorganizavam a mobília da sala. Foi pouco tempo, mas o suficiente para mostrar minha inabilidade com crianças.

Finalmente fomos encher os balões. Eu tentava vasculhar meu cérebro com algum assunto que eu pudesse conversar com a amiga de minha amiga, mas nada me ocorria, e enquanto isso eu ia ouvindo que o filho dela não gostava de banana. Desisti me concentrei nos balões e resolvi esperar um momento que eu e minha amiga estivéssemos sós para conversar. Eu enchia balões e ela ia falando do carro, do marido, do filho, e dos dez milhões de coisas que ela não podia fazer com a vida dela. De repente minha inveja de uma casa de quatro quartos, quintal e carro na garagem começaram a desbotar. Aquilo era maturidade de mais para mim. A coisa se inverteu completamente quando a garota descobriu que eu vivia em NYC. Começou a dizer como gostaria de assistir uma peça da Broadway e outras coisas. Ela falava de tudo como se fosse algo impossível, ela só estava a trinta dólares e quatro horas de NYC, mas a um filho, um marido e um emprego de distância.

Aquilo tudo começou a revirar meu estômago. Olhava para a vida daquela garota e tinha vontade de chorar, eu olhava para a minha e queria fazer o mesmo! Onde diabos escondia-se a felicidade e o contentamento da vida* Aquele foi o aniversário de criança mais estranho e tudo por culpa da mente perturbada. De repente a felicidade da casa de cerca branca que eu nunca quis caiu diante de mim. E agora, o que e usaria de desculpa para os meus momentos de infelicidade* Eu não tinha mais a formação de família e a segurança de vínculos para desejar nos momentos de fraquezas! Era algo que eu sempre soube que não era para mim, mas que sempre esteve lá como uma possibilidade, em caso tudo mais desse errado, mas agora eu tinha estragado tudo. Tinha chegado perto de mais da realidade alheia, e acabei vendo além da cerca branca!